terça-feira, 30 de novembro de 2010

Cabeça Aberta

Amanda Feilding articula uma cruzada mundial para mudar a nossa relação com as drogas

Há mais de 45 anos ela dedica a vida a trazer lucidez a si mesma e ao mundo através dos estados alterados da consciência. Diretora da Fundação Beckley, Amanda Feilding, condessa de Wemyss, articula uma cruzada mundial – que já chegou ao Brasil – para mudar a nossa relação com as drogas, o cérebro e o espírito


Imagem: Arquivo pessoall


O tempo anda em soluços enquanto as paredes de cinco séculos se movem levemente, e um filete denso de fumaça sobe dançando de um cachimbo de madeira deixado há pouco na mesa. Amanda expira, olha para o teto, que é tudo, menos plano. E segue a resposta a uma pergunta perdida lá atrás. “Enfim... você não sabe o que é o amor, até ser amado por um pássaro.” Não era uma novidade para ela tal pensamento nem uma frase para enfeitar conversas psicodélicas. Era uma antiga constatação, da hoje senhora Amanda, dos tempos em que Birdie, o pombo, era vivo.

Mais de 30 anos viveu a querida ave, todos sob as asas soltas de Amanda, e voando livre, sem aparas ou gaiola, sobre os jardins da mansão Beckley. Era um “anjo”, ela diz, “com quem eu tive o privilégio de conviver”. Um pombo, mas também uma metáfora encarnada que ela carregava no ombro durante os mais intensos anos de sua vida. Era o companheiro e o símbolo perfeito para sua busca: a libertação da consciência como uma conquista tanto mística quanto científica. Uma estrada psicodélica, evolucionária, que muita gente um dia decidiu seguir. Mas poucos, se tantos, foram tão resolutos quanto a mãe adotiva de Birdie, a diretora da Fundação Beckley, Amanda Feilding, condessa de Wemyss.

A casa onde estamos é a mesma onde ela nasceu. Ela e tantos, tantos antepassados. A mansão Beckley foi erguida em 1520, e pouca coisa mudou em suas dependências. As mesmas portas, trancas, a mesma escada de madeira e as pedras gastas no chão. Paredes onduladas, ângulos nada euclidianos e uma atmosfera solene que só uns 500 anos podem conferir a um imóvel. Uma casa de personalidade tão única quanto a da dona – as duas tão elegantes e de tão fino berço que aparentam carregar uma fortuna que, de fato, não há. Nem nunca houve em sua vida.
Imagem: Bruno Torturra Nogueira
Amanda nos jardins de Beckley Park
Amanda nos jardins de Beckley Park
Amanda nasceu e foi criada ali na mansão e nos amplos jardins que a cercam. Foi uma infância doce, ela se lembra, mas rigorosamente pobre. “Não havia dinheiro nem para o aquecimento, e no inverno a gente tinha que ficar debaixo de casacos pesados dentro de casa”, diz sem ostentar, “mas era sempre tudo divertido. Não ficava bem se queixar do frio, entende?” Foi entre um inverno e outro, entre bem aparadas sebes, que ainda na infância teve suas primeiras experiências transcendentes. “Era um sentimento diferente que me acometia. De enxergar algo a mais ou de sentir a presença de Deus no meu jardim. Ou de me sentir voando quando meu corpo estava sentado na igreja.”

Foi esse sentimento oceânico que a fez largar a escola aos 16 anos e viajar sozinha pelo Oriente Médio atrás de lições para o espírito. Que a fez voltar a Oxford e arriscar uma vida acadêmica em psicologia e história das religiões. Mas foram as drogas que colocaram a moça no caminho certo. “Naquela época eu fumei maconha e isso transformou minha consciência de uma maneira muito positiva. De repente eu estava vendo mais beleza, escutando mais notas nas músicas. E depois, em 1965, eu experimentei LSD...” Aí tudo, literalmente, mudou. Junto com os mais profundos e metafísicos insights do ácido, ela descobriu Bart Huges, um cientista holandês que se tornou seu amor e parceiro psicodélico. Eram trips e mais trips, ao lado de Birdie, dedicadas a um mergulho interno determinado, sessões psicanalíticas freestyle e leituras de Freud e Reich durante as incursões lisérgicas.

“Proibir estados alterados é não só inviável como pouco inteligente do ponto de vista evolutivo”
Quero ver sangue
Foi nesse tempo, fim dos anos 60 início dos 70, que o pequeno e dedicado grupo de Amanda começou a levantar as hipóteses que até hoje ela luta para comprovar e difundir. A mais importante delas: a de que o cérebro humano tem um leve deficit de sangue, uma consequência negativa do processo de evolução que nos fez bípedes. Nós, os macacos eretos, acabamos por mudar o balanço entre o sangue e o fluido espinhal que irriga nossos miolos. O resultado, segundo Amanda, seria uma queda no número de células ativas no cérebro, menos cognição, menos energia disponível para atividades mais elevadas no cérebro. Menos potencial para estados místicos e percepções transcendentes da realidade. Reverter essa deficiência se tornou o objetivo por trás das infinitas sessões de ioga, meditação, psicanálise e LSD.

“Claro que ninguém quer escutar que tem pouco sangue na cabeça”, Amanda repara, “ofendia muita gente. Então nossa mensagem científica não era muito popular nos anos 60. Mas eu queria realmente testar para ver se nossa ideia era verdadeira e como a gente poderia difundir isso pela sociedade. E eu descobri que é muito difícil quebrar um tabu.” Pudera. Para investigar a tese, a jovem Amanda tomou uma atitude deveras literal para abrir ainda mais sua cabeça: abriu sua cabeça.

Trepanation society
Por quatro anos ela procurou um médico na Inglaterra que se dispusesse a realizar um processo cirúrgico tão ancestral e seguro quanto chocante e tabu – a trepanação. Trata-se da abertura voluntária de um pequeno buraco no crânio. O objetivo é reduzir um pouco a pressão intracraniana e, com isso, facilitar a circulação de um volume maior de sangue pelo cérebro. No passado, xamãs, místicos e ioguins ao redor do mundo fizeram seus furos na cabeça com o claro intuito de ampliar suas capacidades meditativas, mediúnicas, metafísicas. Para Amanda, a razão é mais elaborada: “Se nossa espécie tem realmente deficiência de sangue para irrigar o cérebro, então ele precisa ser racionado. A prioridade é reservá-lo para as partes mais importantes para a sobrevivência. E o mecanismo que controla isso é o chamado ego. Que é baseado em reconhecimento de palavras e isso se tornou o modo pelo qual controlamos nossa função psíquica. E o centro verbal diz mais respeito ao lado esquerdo do cérebro e tende ao pensamento linear, em oposição ao pensamento holístico, não verbal, do lado direito”.

Imagem: Arquivo pessoall
Uma decidida Amanda de 27 anos realiza a autotrepanação
Uma decidida Amanda de 27 anos realiza a autotrepanação

Imagem: Arquivo pessoal
Uma decidida Amanda de 27 anos realiza a autotrepanação

Pender a balança sanguínea um pouco mais para a direita era seu objetivo. Na falta de um doutor disposto, em 1972 decidiu fazer sozinha. Conseguiu uma broca elétrica, um bisturi, anestesia e esterilizantes. Praticou suas habilidades como escultora perfurando um antigo crânio nos dias anteriores. Descolou uma câmera de 16 mm e fez seu primeiro filme, Heartbeat and the brain (Batimento cardíaco e o cérebro). A película é uma raridade, ausente de qualquer acervo analógico ou digital. Amanda apenas o exibiu algumas vezes, sempre para convidados em sua casa ou em seletas salas na Inglaterra. Para a Trip, apertou o play no porão da mansão. “Tenho muito orgulho desse trabalho, mas sei que choca muita gente”, explica enquanto uma sonata de Mozart acompanha os créditos.

Sua voz em off dá um breve histórico da trepanação enquanto Birdie é filmado voando sobre os jardins de Beckley e Londres. E logo surge a jovem e bela Amanda em trajes brancos, aplicando em si mesmo a anestesia logo acima da testa antes de abrir uma curta incisão com o bisturi. Pega a broca e, com uma expressão calma diante do espelho, começa a furar o próprio crânio.

O chocado repórter balbucia onomatopeias de espanto, e Amanda tranquiliza: “Parece forte, eu sei, mas é muito seguro na verdade, se você sabe o que está fazendo. A broca não chega nem perto do cérebro. Existem três membranas bem resistentes entre o osso e os miolos”. Enquanto isso, na tela, a recém-trepanada enfaixa sua cabeça, janta um bife para compensar o sangue perdido e traja um turbante oriental para ir a uma festa na cidade naquela noite.

Pender a balança sanguínea para a direita era seu objetivo. Na falta de um médico, fez sozinha
A causa e o efeito
Hoje, além do autoperfurado buraco, Amanda tem uma segunda trepanação feita por um médico no México no ano 2000. Algo que passa despercebido por quem vê a elegante condessa palestrando em conferências e painéis sobre drogas e as leis que as regem. Há 12 anos ela criou e dirige a Fundação Beckley, possivelmente a mais importante instituição para o avanço das pesquisas de estados alterados da consciência e da urgente reforma da política de drogas.

Ela resume: “No fim dos 90 eu criei a fundação. Porque eu sempre vi as drogas como um problema multidimensional. Primeiro de saber qual é a natureza da consciência e dos benefícios da alteração dela – e trazer a discussão para as instituições oficiais. Mas junto com isso eu sempre fui muito consciente do enorme sofrimento causado pela equivocada abordagem legal das drogas”. A seriedade de seu projeto, sua elegante educação de sangue azul e o alto nível dos cientistas envolvidos nos estudos garantem a respeitabilidade que falta a muitos ativistas liberais na discussão das drogas pelo mundo. Amanda é uma das poucas defensoras dos psicoativos que têm voz junto aos donos do poder.
Imagem: Arquivo pessoal
Em uma de suas jornadas espirituais pelo Oriente Médio na juventude
Em uma de suas jornadas espirituais pelo Oriente Médio na juventude
De um antigo celeiro em Beckley, dois séculos e meio mais antigo do que sua casa de 1520, ela trabalha todo santo dia, contando apenas com uma assistente, alguns financiadores e valiosos parceiros científicos de alto calibre ao redor do mundo. Ela dá os recursos e a orientação de pesquisas para determinar o verdadeiro risco do uso regular de maconha. Entre muitos projetos, simpósios e papéis publicados, foi responsável pela aprovação da primeira pesquisa legal com LSD nos EUA desde o fim dos anos 60. Criou e viabilizou um estudo na Rússia sobre a relação entre circulação cerebral e trepanação. Participou de painéis de discussão da ONU sobre o tema e conseguiu abrir uma discussão aprofundada sobre maconha no parlamento inglês. E, hoje, está rodando as Américas financiada pelo fundo de George Soros para divulgar o livro Cannabis Policy, um aprofundado estudo socioeconômico feito por alguns dos maiores especialistas em criminalidade e a economia do tráfico.

Verdinho e amarelo
Lido e aprovado por Fernando Henrique Cardoso, a compilação acadêmica organizada por Amanda está, em poucos meses, se tornando uma preciosa fonte de subsídios para políticos repensarem suas posições e as leis em seus países. O Brasil é um dos seus alvos prioritários. Recentemente, no fim de fevereiro, Amanda passou pelo Rio de Janeiro para explanar na Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia, organizada por Rubem César Fernandes, do Viva Rio.

Desde os anos 60, ela tem essa convicção, mas que só agora, 45 anos depois, parece tocar os mal irrigados cérebros do poder: a absoluta necessidade de uma reforma no proibicionismo intransigente. “Eu tenho certeza de que não há nada no mundo que possa reduzir tanto sofrimento apenas por uma mudança de abordagem intelectual. A gente ficou tão cego com a visão de exterminar as drogas... e isso não funcionou. Claro que precisamos fazer tudo que podemos para controlar o abuso e os perigos que vêm do uso das drogas. Mas impedir, pura e simplesmente, a produção de estados alterados é não só inviável como muito pouco inteligente do ponto de vista evolutivo.”
Imagem: Arquivo pessoall
Com Albert Hofmann, o criador do LSD, no quarto dele na Suíça
Com Albert Hofmann, o criador do LSD, no quarto dele na Suíça

Como assim, do ponto de vista evolutivo? Amanda toma fôlego e emenda: “Nós estamos em um período desafortunado, em que estados alterados da mente, exceto os produzidos pelo álcool, não são vistos como parte do desenvolvimento da civilização. Não acredito que essas experiências sejam algo que todos desejam. Mas existe uma minoria na sociedade que é exploradora das praias mais distantes da consciência, e a sociedade toda ganha quando permite e encoraja essas pessoas a trazerem ideias e insights desses estados”.

Do uso de drogas? “Não importa muito se isso vem de sonhos, meditação, de se apaixonar – ou do uso de substância psicoativas. Todos esses caminhos levam a um estado neurológico diferente que abre nosso pensamento para um modo de pensar não tão controlado pelo habitual sistema verbal. Isso pode significar, como já significou muitas vezes na história, um salto evolutivo.” Essa é a verdadeira missão por trás de toda sua longa e incomum trip. Se engajar, sem hesitação, na evolução da mente e da espécie humana. Fazer a difícil neuropolítica de mudar a mentalidade do poder sem perder sua credibilidade por conta de seu amor pelos estados alterados e as substâncias que os provocam.

Aos 67 anos, Amanda suspira de cansaço ao falar do trabalho. Lamenta a falta de companhia nessa luta. E se frustra ao perceber, depois de dedicar a vida toda a uma psicoativa cruzada pela lucidez, que muito pouca gente está interessada em discutir de frente a complexa relação entre a humanidade e as substâncias que a transformam. Mas parar, a essa altura do campeonato, está fora de questão. “Muito cedo eu percebi que era um dever da minha parte tentar trazer um pouco de racionalidade na abordagem do controle dos psicoativos. Para mim é inacreditável que alguém não seja livre para explorar sua própria consciência sem dano a ninguém mais. No futuro as pessoas vão ficar perplexas com a nossa época e entender o que isso realmente é: controle psíquico.”

Free as a Birdie
Enquanto a entrevista vai se derretendo em elucubrações sobre Deus e o cérebro parece receber mais sangue do que o de costume, ela me convida para um passeio pela propriedade da Beckley. Mostra o jardim das sebes cuidadosamente podadas. Uma delas como uma hélice de DNA, “que foi descoberto durante uma viagem de LSD pelo [físico e bioquímico britânico] Francis Crick!”, ela aponta. Passamos por uma ponte de pedras sobre um córrego enquanto ela conta das vantagens de criar seus dois filhos, Rocky e Cosmo, sem nenhum segredo sobre sua história de drogas e experiências radicais da consciência. “Eles são ótimos meninos! Tão cheios de boas maneiras”, gaba-se a condessa. E aponta finalmente para um morrinho.
Amanda mandou erguer aquele bonito monte de terra. O buraco resultante é um lago com uma ilhota no centro. Na ilha, Amanda sepultou as cinzas de seu namorado e parceiro intelectual, Bart Huges. O morro, no entanto, foi erguido para abrigar os ossos de Birdie, o pombo. É o mausoléu de seu grande amor metafísico, um animal com o qual ela tinha uma relação telepática, diálogos não verbais cheios de significado desde que ela o resgatou, filhote, caído de um ninho em sua propriedade. A criatura que, para ela, representava o que místicos ao longo dos milênios buscavam entender. O “Espírito Santo”, ela resume. A estranha ponte entre o espiritual e a matéria, entre o eterno e o mortal. O fantasma encarnado que une o sagrado e o trivial. A invisível e onipresente Consciência, que Amanda tanto ama e cultua.

Imagem: Bruno Torturra Nogueira
A condessa, a ilha e o morro, onde dois de seus amores descansam em paz
A condessa, a ilha e o morro, onde dois de seus amores descansam em paz

Que droga é essa?

Da criança que se diverte girando até ficar tonta ao nóia do centro, passando, provavelmente, por você, todos buscamos alterar nossa consciência de alguma forma de vez em quando. Depois de décadas de uma malsucedida guerra contra as drogas, ainda não sabemos lidar com uma das mais básicas e complicadas necessidades humanas

Seja por prazer, por curiosidade, medo, para fugir dos problemas, para resolvê-los, para encontrar Deus ou se jogar em pecados, a fome que o homem tem por alterar sua dita “normalidade” é parte crucial da nossa história e do nosso destino. Da criança que gira obsessivamente para cair tonta, e rindo, no chão até o mais inconsequente dos psiconautas – há em nossa espécie um desejo profundo em colocar a consciência para funcionar sob novos parâmetros. Pouco importa se, pessoalmente, gostamos ou não de drogas. Mas é preciso, em nome da sanidade pública, entender que quem as usa não é simplesmente criminoso, doente, covarde ou corajoso – é, antes de tudo, humano.

Arqueólogos possuem evidências de uso de maconha e plantas psicodélicas em datas próximas a 3 mil anos antes de Cristo. Os Vedas, considerados os mais antigos textos espirituais do mundo, fazem referência ao Soma, um lendário preparado psicoativo que aparenta ser feito com base no cogumelo Amanita muscaria, de grande poder alucinógeno. Em todos os continentes, poderosos preparados vegetais foram a base de importantes estruturas espirituais. Ayahuasca, paricá e san pedro na América do Sul. Cogumelos, peiote, Salvia divinorum na América Central. Maconha na Índia. Iboga no oeste africano. Preparados similares ao chás ayahuasqueiros para ingestão de DMT no Oriente Médio. Opiácios na China. Culto de fungos psicoativos entre os gregos antigos. E uma longa lista de inebriantes, estupefacientes e psicodélicos que, ao longo da história, foram achando seus lugares entre lares, bares, templos, becos e alcovas. Toda cultura, e toda revolução cultural, invariavelmente conta com suas drogas, que ajudam a definir o espírito de um tempo e de um lugar.

Mas apontar para o fator ancestral não deve ser o bastante para nos convencer de que recalibrar a consciência é parte da experiência humana. O antropólogo Henrique Carneiro, especialista na história social das drogas e membro do Neip (Núcleo de Estudos Interdisciplinares dos Psicoativos), abre a questão: “O uso de drogas evoca significados mais profundos do que um hedonismo químico ou um uso psicoterapêutico, mas remete a uma crescente plasticidade da subjetividade humana que se espelha em diversos meios técnicos para buscar a alteração de si, dos estados da consciência, cognição, afetividade e humor”.

Babel de opiniões
Prova do que Henrique defende é que séculos passam, igrejas nascem e morrem, códigos morais florescem e caducam – e o número de opções para a inebriação só aumenta. Assim como se tornaram, com o tempo, ainda mais diversas e insondáveis as razões pelas quais alguém usa ou abusa das drogas. Por isso o assunto pede sobriedade. Algo raro nos discursos de caretas convictos, ex-drogados arrependidos, maconheiros felizes, cheiradores enrustidos, daimistas iluminados, sanitaristas pragmáticos, políticos conservadores e progressistas, religiosos intolerantes e uma multidão dispersa e difusa pelo planeta, que tem cravada na cabeça o que pensa sobre as substâncias que alteram nossos sentidos.

“A guerra às drogas não está funcionando. E foi ela que gerou essa violência...”

Imagem: Reprodução


O caso é que a babel de opiniões desencontradas sempre esbarra no mesmo muro: o da lei. E, por mais que tenhamos a sensação de que “sempre foi assim”, a política internacional repressiva tem uma origem muito recente. Apesar de o século 20 ter derrubado tabus sexuais e morais, na questão psicoativa ainda vive numa espécie de idade média. O veto à maconha veio, nos EUA, na primeira década do século passado por força de lobistas interessados em destruir a indústria de fibras de cânhamo e apoiado por políticos racistas a fim de encarcerar mais negros (praticamente o único grupo a fumar maconha naqueles tempos). Até os anos 40, cocaína era vendida em farmácias e até tônicos infantis carregavam o alcaloide em suas fórmulas. Devagar e sempre uma onda proibicionista se alastrava, mas foi quando as drogas se tornaram combustível de contestação política nos anos 60 que veio o tsunami.

A convenção da ONU de 1971 criou o Painel Internacional de Controle de Narcóticos, que, notoriamente, foi desenhado pelo governo conservador de Richard Nixon, o alvo favorito da geração hippie. Mike Crowley, estudioso de budismo e psicodélicos, na época engajado ativista antiguerra, dá o diagnóstico de quem viveu de perto: “Proibir e reprimir determinada droga é também uma forma de proibir um tipo de grupo, de mentalidade. A convenção de 71 foi mais uma maneira que Nixon achou de esmagar seus opositores”.

O fato é que o mundo, e uma ditatorial América Latina, acabou assinando o tratado que rasurou qualquer valor medicinal e espiritual da maioria dos psicoativos de uso ancestral, ignorou estudos que assinalavam o potencial psicoterapêutico do LSD e baniu autorizações inclusive para futuras pesquisas clínicas com drogas proibidas. “Vivíamos a idade de ouro da psicoterapia. Mas nenhum médico da área foi ouvido”, recorda-se Ann Shulgin, famosa psicóloga psicodélica, esposa do químico Sasha Shulgin. “Lembro do quanto eu chorei quando proibiram o ácido. Nosso trabalho foi simplesmente encerrado sem nenhuma consideração”, lamenta Ann. E dessa convenção se seguiram outras ao longo de 20 anos. O termo guerra às drogas se tornou política internacional. Ronald Reagan criou o slogan “Just Say No” (Apenas diga não). Se algum novo alterador da consciência chegava às ruas, rapidamente era vedado. O consenso nunca debatido era um só: reprimir para “Livrar o mundo das drogas. É possível”, era o mantra declarado dos painéis.

Guerra perdida
Muito diferente é o seguinte slogan: “Rumo a um novo paradigma”. É o que propõe a CBDD, a Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia. Trata-se de uma louvável iniciativa do Viva Rio, encabeçada pelo antropólogo Rubem César Fernandes, que ajuda a organizar um grupo do mais alto escalão político e judicial brasileiro para um debate sobre uma reforma em nossa política de drogas. Entre os pesos pesados na mesa, a estrela é o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que de uns tempos pra cá tem levantado a bandeira da descriminalização do uso das drogas. A razão é clara e já ecoa pelo mundo, mas na boca de um influente ex-chefe de Estado ganha peso 2. FHC conclui: “A guerra às drogas não está funcionando. E foi ela que gerou essa violência no México, na Colômbia. Só que eles [a ONU] estão perdendo a guerra”.

Ele é um dos que não se acanham em vir a público reconhecer que desde sempre o humano usa drogas. Não se priva em dizer que usuário não é criminoso nem pode ser tratado como um. Defende e articula em público e privado um raro consenso entre PT, DEM e o seu PSDB. Mas ele também ainda se perde em estranhas conclusões. “Ninguém aqui está falando em legalizar”, diz o ex-presidente na mesa, “porque, quando o governo legaliza, ele diz que pode usar. Que a pessoa deve usar.”

FHC e seus pares na comissão (a ex-ministra do STF Ellen Gracie, o deputado federal Raul Jungmann, o governador do Rio, Sérgio Cabral, e segue a lista) buscam tirar o usuário de drogas da esfera criminal. Mas no projeto que vem sendo costurado não consideram criar uma alternativa legal para a produção e venda de maconha. Ao contrário, querem reforçar as penas e o combate ao tráfico sob o velho olhar de que drogas são necessariamente prejudiciais e que o usuário precisa de ajuda e não de facilidades de acesso. Em parte por suas próprias convicções, mas muito guiados pelo temor de um massacre eleitoral (“suicídio político” foi uma expressão usada nas conversas da comissão), indicando que a legalização ainda não tem chances no chão do Congresso.

Abuso e uso
Imagem: Reprodução


O projeto de lei sobre a mesa da CBDD está sendo escrito pela caneta do deputado Paulo Teixeira (PT/SP). Ciente da dificuldade de aprovar qualquer texto ousado, ele busca terreno entre os deputados mais conservadores para avançar nos critérios de diferenciação entre usuário e traficante. E, principalmente, no que acontece a alguém flagrado com drogas para seu uso. “Precisamos mover passo a passo”, avalia o deputado, “e sentir a hora certa de avançar mais.” Pelo andar da carruagem, e pelos acirrados ânimos eleitorais, a votação deve ficar para 2011. Mas há uma chance de o consenso ser costurado ainda este ano.

Convidada para apresentar o livro Cannabis Policy na comissão, a condessa de Wemyss, Amanda Feilding, se decepciona: “Descriminalizar o uso não é o suficiente. Se o objetivo é reduzir a violência e tirar o poder dos cartéis, o Estado precisa regular e aceitar alguma alternativa para a produção e a compra legal dessas drogas. Sem isso, o jogo não muda”. O livro que Amanda veio oferecer aos políticos brasileiros é um aprofundado estudo que descreve a maconha não apenas como droga e seus respectivos efeitos a longo prazo no usuário, mas investiga a economia e sugere formas racionais de regular a mais popular de todas as drogas ilegais. Ela vai além, falando sobre o que concluiu ao longo de mais de 40 anos de militância por uma política mais sensível: “Os políticos não têm o conceito de uso de drogas. Para eles o uso é sempre abuso. Não existe sequer a ideia de que alguém pode passar a vida usando drogas e não ter grandes problemas sociais”.

O economista Peter Reuter, renomado especialista no mercado ilegal de drogas, é um dos autores do livro. Seus estudos estimam que 80% de todo o volume de drogas proibidas consumidas no mundo é a milenar cannabis. São dados acatados pela Comissão de Drogas e Crime das Nações Unidas, ela mesma, no papel, uma seguidora do mantra proibicionista. Isso significa cerca de 166 milhões de usuários de maconha no mundo, algo em torno de 4% da população mundial adulta. Todo o restante de drogas ilegais é utilizado por 1% dos adultos da Terra, algo em torno de 34 milhões de pessoas. Se a maconha e, apenas ela, fosse retirada da lista das substâncias caçadas pela polícia, todo o orçamento trilionário da guerra às drogas cairia por terra. “Não defendo o uso, pelo contrário, creio que deveríamos criar campanhas para desencorajar o uso da cannabis. Mas a atual abordagem me parece mais danosa à sociedade do que um mercado regulado e fiscalizado pelo Estado”, conclui Reuter, que afirma, em conversas privadas, nunca ter experimentado a erva.

“A atual abordagem me parece mais danosa à sociedade do que um mercado regulado e fiscalizado pelo estado”
California dream?
A conclusão do especialista é a de que não faz sentido um orçamento próximo de US$ 1 trilhão ao ano, e muito sangue, para reprimir um mercado que seria tão mais restrito se a maconha fosse tirada da conta. E, considerando o consumo de drogas muito mais nocivas como a heroína, o estudo que dá lastro ao Cannabis Policy também dá um diagnóstico diferente da mentalidade muito bem difundido da estrada sem volta das drogas...
Imagem: Reprodução


Do 1% dos terráqueos que utilizam drogas mais pesadas e aditivas do que a maconha, apenas 10% desenvolvem grave dependência e problemas sociais. O que significa um número de 0,1% da população mundial que é viciada em drogas ilícitas e pode tornar-se um transtorno ou risco para as pessoas ao seu redor. É um número que poderia ser mais bem administrado (e reduzido) através de programas de educação e recuperação com verbas infinitamente menores do que o orçamento da guerra às drogas. Hoje, os demais 90% de usuários parecem passar a vida mantendo um uso controlado e sem graves consequências. Exceto uma: o dinheiro que gastam, e que sustenta uma podre rede criminosa no mundo.

Mas, a despeito dessa realidade, quando se fala de drogas nos órgãos internacionais, a maconha não entra na pauta. Nem o uso responsável. Nem os aspectos antropológicos, médicos, espirituais ou hedonistas da nossa relação com as drogas. Mas há um movimento contrário, dá para sentir, quando revistas tão mainstream como a Economist defendem na capa a legalização de todas as drogas. Ou quando países como Portugal, de onde FHC tirou grande parte de suas novas posturas, ignoram a convenção de 1971 e criam contextos legais para o uso e o cultivo de maconha com sensíveis resultados positivos, como a redução do tráfico nas fronteiras e sem um aumento significativo no número de usuários. Um movimento de realismo pode emergir quando a Califórnia votar, em novembro, uma proposta que pode legalizar a maconha no Estado mais rico dos EUA. O ativista pró-maconha medicinal da costa oeste americana, James Anthony, um dos representantes da campanha pelo “sim”, avalia: “Há dez anos um plebiscito como esse seria inviável. A maré está virando”. Se isso acontecer, especialistas concordam, um efeito cascata pode ocorrer – e soluções locais para regulamentar as drogas podem ocupar a pauta de parlamentos pelo mundo.

Só nos resta torcer por lucidez nos círculos do poder e, mais importante, nos informar. Exigir de nós mesmos e de quem discute conosco coerência e uma mente aberta para o assunto. Trazer a discussão para nossa rotina e tentar pensar as drogas mais profundamente. Não existe resposta fácil e, independente de que caminho o mundo vai seguir no pós-guerra, continuaremos vendo consequências do abuso de substâncias. Seguiremos nos entorpecendo para celebrar, para consolar, para pensar menos ou mais. E, sobretudo, para ver as coisas de uma forma diferente – exatamente o que é mais urgente em relação às drogas.

sábado, 27 de novembro de 2010

Keith Richards pode ser cortado de filme por apologia as drogas

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De acordo com informações do canal Telecine, o guitarrista do ROLLING STONES Keith Richards pode ter suas cenas cortadas do próximo filme da franquia "Piratas do Caribe". Tudo por conta de sua autobiografia, "Life", que chegou ontem (26) às livrarias.

A notícia foi divulgada pelo site americano Drudge Report. Uma fonte interna da Disney revelou que os executivos da empresa não gostaram das declarações do roqueiro sobre as drogas em seu livro e estão preocupados com a associação de Richards ao filme, que deve ter um apelo familiar. "Não é apenas à alta qualidade das drogas que tomei que atribuo minha sobrevivência. Eu era muito meticuloso quanto à quantidade. Eu nunca tomaria mais para ficar um pouco mais alterado. É aí que muitos se f… com as drogas", diz um trecho de "Life".
Richards já encerrou as filmagens de sua participação em "Pirates of the Caribbean: On Stranger Tides" (título original). O guitarrista já havia participado do terceiro filme da franquia, "Piratas do Caribe – No fim do Mundo", de 2007.

A legalização global das drogas é possível?


felipe_gonzalez.jpgPara o ex-presidente espanhol Felipe González (foto) parece que sim. Por ocasião das comemorações do 200º aniversário da independência do México este ano, González declarou recentemente que a violência em que vive o país não é um problema só do México. “O país está contando os mortos, enquanto o dinheiro gerado pelo narcotráfico, cerca US$ 350 bilhões por ano, estão do outro lado da fronteira com os Estados Unidos", afirmou. González disse também que as armas usadas pelo crime organizado vêm do país vizinho e defendeu que “esse desequilíbrio tem que mudar”.

Felipe González, que governou a Espanha de 1982 a 1996, se une assim ao coro de dirigentes internacionais que acreditam que a situação da violência organizada chegou a níveis tão altos que é necessário repensar a política de guerra às drogas.

A solução, para o ex-presidente espanhol, seria realizar uma conferência internacional para debater a legalização das drogas no mundo todo. Segundo González, uma decisão de legalizar as drogas deve ser global porque “nenhum país pode decidir isso unilateralmente sem um custo extraordinariamente alto para seus dirigentes”, admitiu.

González lembrou o que aconteceu durante a vigência da lei seca nos Estados Unidos, quando a proibição de vender bebidas alcoólicas, que esteve em vigor entre 1920 e 1933, teve como consequência o aumento da criminalidade. O ex-presidente convidou a população a olhar para trás e pensar nos milhares de pessoas mortas nos Estados Unidos por causa da expansão do crime organizado que se formou graças à ilegalidade da venda e consumo de bebidas alcoólicas. “Aquilo acabou quando se colocou fim à proibição e o negócio, junto com os impostos que se seguiram, se tornou legal”, afirmou González.

Debate aberto: mitos e realidades

As Nações Unidas calculam que existem no mundo mais de 200 milhões de consumidores de drogas, o que gera um negocio de mais de 270 bilhões de euros por ano. E a guerra às drogas não rendeu frutos. O Escritório das Nações Unidas contra a Droga e o Delito (UNODC) reconhece em seus relatórios que existe esse número se mantém estável. O Observatório Europeu de Drogas e Dependências Químicas (OEDT) também admite esta tendência.

A seguir por este camino, descriminalizar a posse e o consumo de drogas seria o primeiro passo na direção de uma mudança de paradigma. Felipe González concorda com a propuesta dos ex-presidentes do Brasil, Fernando Henrique Cardoso; México, Ernesto Zedillo, e Colômbia, César Gaviria, que pediram, em fevereiro do ano passado, no Rio de Janeiro, a descriminalização da posse de maconha para uso pessoal.

Miembros da Comissão Latino-americana sobre Drogas e Democracia, os ex-presidentes advogam por uma “mudança de estratégia” na guerra contra as drogas. O relatório preparado pela Comissão conclui que “tudo que foi feito até agora para combater a produção, a venda e o uso de drogas foi ineficaz e negativo, com um grande número de mortos e de dinheiro gasto sem que nada tenha mudado”.

José Miguel Sánchez Tomás, professor de Direito Penal da Universidade Rey Juan Carlos e advogado do Tribunal Constitucional, aponta a mesma direção. “Em todas estas declarações subentende-se um movimento na direção de uma mudança na guerra contra as drogas. Há 12 anos se concebeu que o objetivo era uma sociedade livre das drogas, se investiu muito dinheiro, e o problema não foi resolvido", conclui Tomás. "De concreto", afirma, "se emolduram as propostas dos ex-presidentes latino-americanos, países que passaram de produtores de drogas a também consumidores".

Tomás aprova a descriminalização do consumo e da posse, como foi feito na Espanha, em Portugal e na Itália. “Ao não perseguir o usuário, é possível se fazer políticas de prevenção e de saúde pública de forma integral, ao mesmo tempo que se diminui a pressão sobre um sistema judicial já asfixiado”, afirma. No entanto, Tomás não acredita que seja possível liberar o comércio e também não concorda com González de que a legalização deve ser uma estratégia mundial. Para ele, as mudanças na legislação devem ser feitas localmente, país por país, do contrário, seria como lutar contra uma maré muito forte e seria um esforço em vão. “Se a mudança for feita aos poucos, a criminalização do consumo cairá em desuso”, aposta.

carmen_moya.jpgPor sua vez, a delegada do governo para o Plano Nacional sobre Drogas, Carmen Moya (foto), declarou ser a favor de uma política europeia de drogas. Em um editorial para o jornal “El País”, Moya concorda com Brendan Hughes, analista legal do Observatório Europeu de Drogas e Dependências Químicas (OEDT): “o que afirma a ONU é, basicamente, que deve haver um controle das drogas para proteger a saúde, mas ultimamente tem se atuado mais no reforço das leis”, escreveu.

Neste marco,  podem ser enquadradas as políticas de “descriminalização - e não de legalização - do consumo de drogas”. Para Hughes a diferença é chave. “Ao descriminalizar o consumo, ele passa anão ser mais um delito cabível de pena e o usuário não vai preso por consumir a droga, mais isso não qeur dizer que que seja legal", explica.

Com relação à legalização do comércio o especialista é cético. “De fato, a regulamentação da ONU a respeito - que proíbe o comércio - é uma das que tem mais adesões e é muito difícil que 200 países mudem de opinião, supondo que houvesse vontade política de tentar legalizá-lo”, afirma Hughes.

domingo_comas_antenea.jpgA legalização da venda de drogas é algo que Hughes duvida que ocorra, pelo peso da opinião pública. “Nunca tivemos uma pesquisa nacional em que a maioria da população apoiasse a legalização. Siempre são uma minoria. Nem sequer está claro se a população distinguiria entre legalizar e descriminalizar porque as pessoas enxergam o tema como uma questão de tudo ou nada: ou proíbe tudo ou legaliza tudo”, declarou Hughes.

Domingo Comas (foto), presidente do Grupo Interdisciplinar sobre Drogas da Fundação Atenea, ONG que luta pelos direitos dos excluídos socialmente, aposta em outra direção. Durante o seminário "Ciclo de cultura e exclusão", que tratou da questão das drogas em manifestações culturais, Comas considerou “inevitável” que se acabe despenalizando o comércio de drogas.

Para o especialista, o consumo terapêutico da heroína é outro passo nesse sentido e estima que depois virá a descriminaliação do uso recreativo da cocaína. “Quando a sociedade aceitar isso, alguém terá que dizer que há necessidade de regularizar a prohibición e a distribución”, opina. Nessa hipótese, entrarão grandes empresas no negócio. E o que Comas admite é que não se sabe se seria “um momento melhor ou pior que o atual”.

Declarações a favor ou contra, o certo é que o debate está aberto no país que é considerado pelas Nações Unidas o segundo maior mercado de Europa, ficando atrás somente do Reino Unido. A Espanha também é o país com a maior população carcerária da União Europeia, e onde cerca de 70% dos presos estão na cadeia por delitos relacionados às drogas.

Políticas anti-HIV devem ver usuário de drogas como paciente, diz Cruz Vermelha

Estimativa é de que 16 milhões no mundo usem drogas injetáveis, e 3 milhões tenham vírus

A propagação do HIV e da aids entre milhões de pessoas no mundo poderia ter sido reduzida se os usuários de drogas injetáveis fossem tratados como pacientes clínicos, e não como criminosos, afirmou a Federação Internacional da Cruz Vermelha nesta quinta-feira, 25.

"Mais de 80% dos governos em todo o planeta estão inclinados a realidades artificiais, impermeáveis à evidência de que enxergar pessoas que consomem drogas injetáveis como criminosos é uma política fracassada, o que contribui para a propagação do HIV'', disse a Cruz Vermelha.


Estima-se que 16 milhões de pessoas no mundo usem drogas injetáveis, principalmente porque dão uma sensação mais intensa e rápida que fumar ou cheirar, por exemplo. Segundo a Cruz Vermelha, esse tipo de uso é uma tendência crescente em todos os continentes.
A divulgação de um relatório de 24 páginas pela Federação Internacional da Cruz Vermelha - essencialmente para promover uma nova estratégia que interrompa a propagação do vírus entre usuários de drogas injetáveis - ocorre na semana que antecede o Dia Mundial da Aids, lembrado em 1º de dezembro.
A federação, que representa as unidades nacionais da Cruz Vermelha em quase todos os países do globo, sugere formas de reduzir o risco de os viciados contraírem o vírus por meio de sangue contaminado transmitido no compartilhamento de agulhas. O texto também aponta que muitos dos usuários estão vendendo o corpo para poder pagar pela droga, o que aumenta muito a probabilidade de propagação do HIV entre um público desavisado.
Mais de 3 milhões de pessoas que injetam drogas têm HIV, o que representa quase um décimo dos 33,3 milhões de infectados em todo o mundo. Nos Estados Unidos, cerca de 56 mil pessoas, muitas delas usuárias de drogas injetáveis, são infectadas a cada ano, uma taxa que tem se mantido estável há uma década. Mas muitos dos que estão contaminados não o sabem, e espalham o vírus involuntariamente, de acordo com o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) do país.
Durante anos, o CDC recomendou exames de rotina, principalmente entre usuários de drogas intravenosas e outros indivíduos de alto risco. Se as novas infecções são descobertas precocemente, pacientes com HIV podem ser tratados com drogas potentes o suficiente para adiar o aparecimento dos sintomas da aids.
O relatório da Cruz Vermelha diz ainda que China, Malásia, Rússia, Ucrânia e Vietnã têm uma "megaepidemia" de drogas injetáveis. Em alguns países, como Rússia, Geórgia e Irã, esses usuários respondem por mais de 60% das infecções por HIV.
A Cruz Vermelha considera a crescente taxa de infecção por HIV entre esse grupo uma "emergência de saúde pública" e recomenda aos governos mais prestação de serviços, como terapia de substituição de drogas, seringas limpas e trocas de seringas. Segundo o relatório, estudos demonstram consistentemente que as trocas de seringas podem diminuir as taxas de transmissão em até 42%.
"A federação está se concentrando em usuários de drogas injetáveis, pois crescentes evidências mostram que a falta de programas rígidos para alcançar esse grupo põe não só em risco a saúde deles, mas também a segurança do público em geral", afirmou o presidente da entidade, Tadateru Konoe.
A Agência de Aids das Nações Unidas, sediada em Genebra, na Suíça, informou no início desta semana que a epidemia global de HIV entre a população em geral tem recuado, com uma diminuição de 20% de novas infecções na última década. Mas o relatório da agência também observou que ainda existem 7 mil novos casos de infecção por dia, o que significa que duas pessoas são contaminadas com o vírus para cada uma que inicia o tratamento.

5 mil anos de viagem

 

O homem tem uma longa história de convivência com psicotrópicos - há milênios eles são usados desde em ritos indígenas até animadas festas romanas. Conheça a trajetória das principais drogas na nossa cultura


Há cerca de 5 mil anos, uma tribo de pigmeus do centro da África saiu para caçar. Alguns deles notaram o estranho comportamento de javalis que comiam uma certa planta. Os animais ficavam mansos ou andavam desorientados. Um pigmeu, então, resolveu provar aquele arbusto. Comeu e gostou. Recomendou para outros na tribo, que também adoraram a sensação de entorpecimento. Logo, um curandeiro avisou: havia uma divindade dentro da planta. E os nativos passaram a venerar o arbusto. Começaram a fazer rituais que se espalharam por outras tribos. E são feitos até hoje. A árvore Tabernanthe iboga, conhecida por iboga, é usada para fins lisérgicos em cerimônias com adeptos no Gabão, Angola, Guiné e Camarões.
Há milênios o homem conhece plantas como a iboga, uma droga vegetal. O historiador grego Heródoto anotou, em 450 a.C., que a Cannabis sativa, planta da maconha, era queimada em saunas para dar barato em freqüentadores. "O banho de vapor dava um gozo tão intenso que arrancava gritos de alegria." No fim do século 19, muitos desses produtos viraram, em laboratórios, drogas sintetizadas. Foram estudadas por cientistas e médicos, como Sigmund Freud.
Somente no século 20 é que começaram a surgir proibições globais ao uso de entorpecentes. Primeiro, nos EUA, em 1948. Depois, em 1961, em mais de 100 países (Brasil entre eles), após uma convenção da ONU. Segundo um relatório publicado pela entidade em 2005, há cerca de 340 milhões de usuários de drogas no planeta. Movimentam um mercado de 1,5 trilhão de dólares. "Ao longo da história, as drogas tiveram usos múltiplos que alimentaram e espelharam a alma humana", diz o professor da USP Henrique Carneiro, autor de Pequena Enciclopédia da História das Drogas e Bebidas. Elas deram origem a religiões, percorreram o planeta com o comércio, provocaram guerras, mudaram a cultura, música e moda. Acompanhe agora uma viagem pela história das substâncias mais famosas.

Ayahuasca
Índios da bacia Amazônica tomam esse chá alucinógeno há mais de 4 mil anos – um hábito que chamou a atenção de portugueses e espanhóis assim que eles desembarcaram por aqui, no século 16. Ao chegarem à Amazônia, padres jesuítas escreveram sobre o chá da "poção diabólica" e as cerimônias que os indígenas realizavam depois de consumir o ayahuasca. Durante todo esse tempo, a bebida provavelmente teve a mesma receita: um cozido à base de pedaços do cipó Banisteriopsis caapi.
O nome quem deu foram os índios quíchuas, do Peru. Ayahuasca quer dizer "vinho dos espíritos" – segundo eles, o chá dá poderes telepáticos e sobrenaturais. Mas os quíchuas são apenas um dos 70 povos na América Latina que tomam o chá com freqüência. Na maioria dos casos, o chá é visto como uma divindade. Mas a ayahuasca também serve ao prazer: ao final dos rituais, muitos índios transam com suas parceiras.
No século 20, a fama do chá correu o mundo. Escritores viajavam para a América do Sul, enfrentavam o calor e a umidade e dormiam em aldeias para ter experiências alucinógenas. Entre os pirados estavam o poeta beatnik William Burroughs. Burroughs esteve no Brasil e na Colômbia, em 1953. Quando voltou aos EUA escreveu o livro Cartas do Yagé (yagé é outro nome do chá, tomado na periferia de Bogotá). "Uma onda de tontura me arrebatou. Brilhos azuis passavam em frente de mim", escreveu. Depois, recomendou a bebida ao amigo Allen Ginsberg, que veio para a Amazônia em 1960. Hoje o chá é tão divulgado na internet (mais de 400 mil sites) que existem até pacotes turísticos vendidos por entidades clandestinas. A pessoa paga hotel, avião e visitas a tribos que fazem o culto. O custo: entre 1 000 e 1 300 dólares.

Cacto peiote
Cerca de 10% das mais de 50 espécies de cacto têm propriedades alucinógenas. A mais conhecida é a Lophophora williamsi, que brota em desertos no sul dos EUA e norte do México. É usada em rituais há 3 mil anos e cerca de 50 comunidades indígenas a consideram sagrada. Os huichois, do norte do México, chegam a fazer uma peregrinação anual de mais de 400 km para colhê-la. Quando a encontram, fazem um ritual: em silêncio, agem como se estivessem diante de um cervo, até lançarem uma flecha na planta. Quando voltam com o peiote para a tribo, organizam rituais e celebrações sob efeito da droga.
Algumas tribos da região, no entanto, descobriram os poderes do peiote somente no século 19. "Depois da Guerra Civil Americana, os índios comanches e os navajos viveram uma terrível crise com o extermínio dos seus búfalos e os massacres que sofreram", conta o pesquisador da USP Henrique Carneiro. Para amenizar a fase difícil, "aderiram ao consumo religioso do peiote". Numa das cerimônias, chamada "dança fantasma", os índios dançavam alucinados e diziam se comunicar com os mortos.
O escritor inglês Aldous Huxley tomou a mescalina, substância do cacto. Descreveu as viagens no livro As Portas da Percepção: "Foi como tirar férias químicas do mundo real". Mas nem só o underground era seduzido pela droga. O físico inglês Francis Crick – que em 1953 descobriu a estrutura do DNA – provou o peiote várias vezes e gostou. Em 1967, quando lançou o livro Of Molecules and Men ("Sobre Moléculas e Homens", sem tradução em português), o cientista colocou na epígrafe a frase "Este é o poderoso conhecimento, sorrimos com ele", tirada do poema Peyote Poem, do escritor e doidão Michael McClure.

Cocaína
Quando chegaram à América, os espanhóis perceberam que os índios da região tinham adoração pela folha da coca. Pragmáticos, passaram a distribuí-la aos escravos para estimular o trabalho. Acontece que os brancos também tomaram gosto pela coisa. E as folhas foram parar na Europa.
No Velho Continente, a planta era utilizada na fabricação de vinhos. Um deles, o Mariani, criado em 1863, era o preferido do papa Leão 13, que deu até medalha de honra ao produtor da bebida. Foi nessa mesma época que o químico alemão Albert Niemann isolou o alcalóide cloridrato de cocaína. Como tantos outros cientistas que você vai conhecer nesta reportagem, ele usou o corpo como cobaia: aplicou a droga na veia e sentiu a força do efeito.
O psicanalista Sigmund Freud investigou o uso da droga. Achava que ela serviria como remédio contra a depressão e embarcou na experiência: "O efeito consiste em uma duradoura euforia. A pessoa adquire um grande vigor". Até que um dos pacientes, Ernst Fleischl, extrapolou e morreu de overdose. Freud, então, abandonou a droga.
Era normal laboratórios fazerem propaganda sobre a cocaína. Dizia-se que era "excelente contra o pessimismo e o cansaço" e, para mulheres, dava "vitalidade e formosura". Somente no começo do século 20 é que políticos puritanos começaram a lutar pela proibição da droga, que praticamente sumiu do país. Só voltaria no fim da década de 1970, quando a cocaína refinada na Bolívia e Colômbia entrou nos EUA. E, mesmo proibida, não saiu mais.

Crack
Feita pela mistura da pasta de cocaína com bicarbonato de sódio, leva em segundos a um estado de euforia intenso que não dura mais do que 10 minutos. Assim, quem usa quer sempre repetir a dose. O nome crack vem desse efeito rápido, que surge como estalos para o usuário.
O consumo de crack explodiu no meio dos anos 80, como alternativa barata à cocaína. Mas a droga aparecia também em festas de universitários e até de políticos. Um desses casos ficou famoso. Em janeiro de 1990, o prefeito de Washington, Marion Barry, foi preso numa operação do FBI quando estava num quarto de hotel com uma antiga namorada, cooptada pelos policiais. Assim que ele começou a usar crack, os agentes entraram no lugar e o prenderam. Barry renunciou e ficou detido por 6 meses numa prisão federal.
Em São Paulo, o crack ainda hoje é a droga mais vendida em favelas e entre os sem-teto. No Rio, demorou muito mais para circular. "A disseminação do crack é fruto de ação do vendedor de cocaína no varejo, que produz as pedras em casa. No Rio, a estrutura do tráfico não permitia essa esperteza", afirma Myltainho Severiano da Silva, autor de Se Liga! O Livro das Drogas. Quem vendia crack era assassinado. Mas, em crise por causa de apreensões de drogas pela polícia, os chefões do tráfico passaram a permitir a venda de crack no Rio no fim da década de 1990.

Cogumelos
Existem cerca de 30 mil tipos de cogumelos no mundo, mas só 70 provocam viagens. São os cogumelos alucinógenos, com alcalóides que, quando ingeridos, dão barato. Um segredo, aliás, há tempos conhecido pelo homem: 5 mil anos atrás o cogumelo Amanita muscaria já era colhido ao pé de carvalhos no norte da Europa e na Sibéria. Quando não o encontravam, os nativos da região bebiam até a urina de renas que comiam o cogumelo, para assim conseguir o efeito entorpecente.
No Império Romano, o cogumelo utilizado era outro, o caesarea, consumido com vinho em festas que terminavam em orgias. Outra espécie, Claviceps pupurea, que nasce de parasitas do centeio, fez sucesso por acaso em regiões da Itália durante a Idade Média. Em algumas aldeias, os pães eram feitos com farinha do centeio onde o fungo crescera. Sob o efeito do cogumelo, as pessoas dançavam sem parar em festas. Os sábios, que não sabiam que era o pão que dava barato, diziam que a euforia era causada pela picada de uma aranha. Deram a essa sensação o nome de "tarantismo" (de tarântula). Dessas festas teria surgido uma dança famosa – a tarantela.
No hemisfério sul, a variedade mais comum é o psilocybe que nasce nas fezes do gado. A mesma espécie aparece na América Central, onde arqueólogos encontraram esculturas em forma de cogumelo misturadas com figuras humanas. Datam de 500 a.C. e estão em El Salvador, Guatemala e México.

Maconha
A Cannabis sativa, originária da Ásia Central, é consumida há mais de 10 mil anos. Os primeiros sinais de uso medicinal do cânhamo, outro nome da planta, datam de 2300 a.C., na China, numa lista de fármacos chamada Pen Ts’ao Ching – um estudo encomendado pelo imperador Chen Nong (a maconha servia tanto para prisão de ventre como para problemas de menstruação). Na
Índia, por volta de 2000 a.C., a Cannabis era considerada sagrada.
A planta apareceu no Brasil com escravos africanos, que a usavam em ritos religiosos. O sociólogo Gilberto Freyre anotou isso no clássico Casa Grande & Senzala, de 1933: "Já fumei macumba, como é conhecida na Bahia. Produz a impressão de quem volta cansado de um baile, mas com a música nos ouvidos". No Brasil, até 1905, podia-se comprar uma marca de cigarros chamada
Índios. Era maconha com tabaco. Na caixa, um aviso curioso: "Servem para combater asma, insônia e catarros".
No século 19, a erva foi receitada até para a rainha inglesa Vitória. Ela fez um tratamento à base de maconha contra cólicas menstruais, indicado pelo médico do palácio. Hoje, há uma cultura em torno da droga que se mantém com revistas especializadas, sites e ongs defendendo seu uso. A maconha tem até torneio anual, na Holanda: a Cannabis Cup, que avalia a qualidade da droga de todos os continentes. O país, aliás, não permite o comércio livre da erva. A droga pode ser vendida apenas nos coffee shops e o limite por pessoa é de 5 gramas – suficiente para 5 cigarros.

Haxixe
A pasta formada pelas secreções de THC, princípio ativo da maconha, é consumida há milênios na Ásia – na China, foram encontrados registros de seu uso medicinal em 2500 a.C. Mas foi o comércio de especiarias que fez do haxixe uma droga "global". Acredita-se que por volta de 2 d.C. a substância seguiu para o norte da África e Oriente Médio pelas mãos de comerciantes que iam ao Oriente em busca de especiarias. Eles recebiam haxixe como cortesia nas operação de compra e venda.
O nome, no entanto, vem do árabe – hashish significa "erva seca". Ficou conhecido assim quando Hassan bin Sabbab, líder de uma seita xiita da Pérsia no século 11, reuniu seguidores numa fortaleza para matar soldados das Cruzadas. Antes de entrar em ação, usavam a droga. Os homens de Hassan, conhecido como Velho da Montanha, eram chamados de aschinchin – alguém sob influência do haxixe. Daí derivou a palavra assassin, ou assassino.
A droga se espalhou pela Europa no século 18. O poeta francês Charles Baudelaire e seus amigos escritores Alexandre Dumas e Victor Hugo se reuniam para fumá-la. Baudelaire gostava tanto de haxixe que fazia parte de uma ordem, a Club des Haschichiens. Nos encontros, além de usar haxixe, os participantes tinham um estranho ritual: exaltar Hassan bin Sabbab. Todos vestiam roupas árabes e um dos integrantes era eleito o Velho da Montanha.

Ecstasy
Em 1912, um químico que investigava moderadores de apetite para a empresa alemã Merck desenvolveu uma droga de nome impronunciável: metilenedioxianfentamenia, ou MMDA. Experimentou, sentiu uma leve euforia, mas arquivou a descoberta. Na década de 1960, o cientista americano Alexander Shulguin procurava um remédio que estimulasse a libido. Encontrou os papéis da pesquisa da Merk e incluiu o MMDA na lista de mais de 100 substâncias que ele testou em tratamentos psiquiátricos. A que fez mais sucesso foi justamente a MMDA, que ganhou a fama de "droga do amor". Os pacientes diziam que ela os ajudava a ser mais carinhosos – hoje, sabe-se que a droga estimula a produção de serotonina no cérebro, responsável pela sensação de prazer.
Não surpreende, portanto, o nome que fez a substância famosa: "ecstasy", de êxtase mesmo. Em 20 anos, as pastilhas da droga estavam circulando nas ruas. Eram combinadas com o som da música eletrônica em festas chamadas raves, que atravessavam o dia e só terminavam à tarde. Em 1988, o êcstasy foi a febre no verão inglês, que acabou batizado de Summer of Love, ou "verão do amor" , mesmo nome que os hippies deram ao ano de 1967, quando eles se entupiram de LSD. A comparação não era exagerada: as duas drogas estiveram por trás de boa parte da produção cultural jovem de suas épocas.

Heroína
A substância foi descoberta em 1874, a partir de um aprimoramento na fórmula da morfina. Os trabalhos de pesquisa nessa área já haviam levado, por exemplo, à invenção da seringa, criada em 1853 por um cientista francês que procurava maneiras de melhorar a aplicação da morfina. Batizado de heroína, o novo remédio começou a ser vendido em 1898 para curar a tosse. A bula dizia: "A dose mínima faz desaparecer qualquer tipo de tosse, inclusive tuberculose". O nome fazia referência às aparentes capacidades "heróicas" da droga, que impressionou os farmacêuticos do laboratório da Bayer.
Logo descobriram também que, injetada, a heroína é uma droga de efeito veloz, poderoso e que provoca dependência rapidamente. Viciados em crise de abstinência têm alucinações, cólicas, vômitos e desmaios. Assim, a heroína teve sua comercialização proibida em 1906, nos EUA. Em 1913, o fabricante alemão parou de produzi-la, mas ela manteve intensa circulação ilegal na Europa e, principalmente, na Ásia. A droga voltou a aparecer nos EUA somente no começo dos anos 70, quando soldados servindo na Guerra do Vietnã começaram a consumi-la com asiáticos. Estima-se que cerca de 10% dos veteranos voltaram para casa viciados. .

LSD
O químico alemão Albert Hofmann trabalhava no laboratório Sandoz, em 1938, investigando um medicamento para ativar a circulação. Testava a ergotamina, princípio ativo do fungo do centeio, que ele sintetizou e chamou dietilamida. Tomou uma dose pequena e sentiu um efeito sutil. Somente em 19 de abril de 1943 Hofmann resolveu testar uma dose maior. O químico, então com 37 anos, voltou para casa de bicicleta. Teve a primeira viagem de ácido de que se tem notícia: "Vi figuras fantásticas de plasticidade e coloração", contou. Apresentou o LSD (iniciais em alemão de ácido lisérgico) a amigos médicos. Hofmann hoje tem 100 anos e é um dos integrantes do comitê que escolhe o Prêmio Nobel.
O americano Timothy Leary se encarregou de ser um dos embaixadores do LSD pelo mundo. Doutor em psicologia clínica de Harvard, ministrava a droga para seus pacientes e a recomendava a alunos do campus – até ser expulso pela universidade, em 1963. Na época a cidade de São Francisco começava a se tornar capital da cultura hippie. Uma das principais atrações eram shows de rock para uma platéia encharcada de ácido fabricado em laboratórios clandestinos. Os freqüentadores pregavam o amor livre, a vida em comunidade e veneravam religiões orientais. O lema deles você conhece: "paz e amor".
Em 1967, o movimento era capaz de reunir até 100 mil pessoas num parque. As farras lisérgicas muitas vezes acabavam em sexo coletivo. Não é à toa que o ano tenha entrado para história como Summer of Love, o "verão do amor".

Ópio
O suco leitoso tirado da papoula branca é consumido há cerca de 5 mil anos no sudoeste da Ásia, em ilhas do Mediterrâneo e no Oriente Médio. Fez parte até da mitologia grega – era usado para venerar a deusa Demeter. A lenda dizia que, após ter sua filha Proserpina raptada, Demeter passou a procurá-la. Encontrou e comeu sementes de papoula, diminuindo a dor da perda. A imagem da deusa, então, ficou ligada à papoula – e rituais em sua homenagem incluíram o uso da droga. O nome ópio vem do grego opin, ou suco. A chegada da civilização romana não diminuiu a sua popularidade, inclusive para fins medicinais. "O ópio era a aspirina de seu tempo. No ano 312, havia na cidade de Roma 793 estabelecimentos que o distribuíam", afirma Antonio Escohotado, em O Livro das Drogas.
Na época das navegações, a Inglaterra chegou a monopolizar a venda mundial de ópio. Entre os principais importadores estava a China, apesar de o produto ser proibido lá desde 1729. A luta contra o contrabando levou a um conflito militar entre os dois países, que durou de 1839 a 1842 e ficou conhecido como Guerra do Ópio. Os ingleses venceram e obrigaram a China a permitir o comércio da droga. Ficaram também com o território de Hong Kong, que só foi devolvido em 1997.

Proibir é legal?

Desde os anos 60, o mundo trata os entorpecentes como problema de polícia. nesse período, o consumo cresceu e a violência atingiu a todos – usuários ou não. será que a guerra às drogas ainda faz sentido?

O álcool faz mal à saúde. E não só à de quem bebe. Ele corrói famílias, causa acidentes e cobra uma alta conta do sistema público de saúde. Mas, como o álcool é uma droga legal, seu comércio gerou uma indústria saudável, que movimenta a economia como qualquer outro bem de consumo: rende impostos ao governo, lucro para empresas e empregos para quem quer trabalhar. A cada ano, a indústria global do pileque fatura US$ 450 bilhões.
A cocaína, a heroína e o ecstasy também fazem mal à saúde. E também giram um mercado que rende um belo dinheiro: cerca de US$ 330 bilhões por ano. Da ilegalidade, porém, germinou uma indústria doente: em vez de gerar impostos, o dinheiro dos narcóticos chega ao Estado sob a forma de propinas que fomentam a corrupção. O lucro do negócio é investido em armas que alimentam a violência. Em lugar de empregos, o tráfico oferece às crianças e jovens uma vida de crimes.
Parece fácil a solução, então: tratemos as drogas como tratamos o álcool. Há muita gente boa acreditando nisso: economistas, médicos, políticos. Mas, para cada defensor, existe uma opinião contrária. Afinal, ninguém sabe exatamente quais os efeitos da legalização: ela jamais foi plenamente colocada em prática. Quais drogas poderiam ser liberadas? O crime organizado e o tráfico perderiam força? O consumo aumentaria? Como isso afetaria a sociedade?
Dúvidas como essas terão espaço nesta reportagem. Mas parecem não existir na cabeça dos legisladores. Colocar as drogas na ilegalidade foi a solução sistematicamente adotada no século 20, em todas as partes do globo. Infelizmente, a lei não controlou o consumo – e há quem defenda que ela o aumentou. De quebra, nos jogou numa guerra contra traficantes, que por sua vez estão em guerra contra todos nós. “O dano que o vício dos outros causa em nós nasce quase completamente do fato de as drogas serem ilegais”, escreveu em 1972 o americano Milton Friedman, talvez o mais influente economista do século 20, vencedor do Prêmio Nobel e defensor da total legalização dos entorpecentes.


Por que proibir?


Discutir se as drogas devem ser legalizadas esconde uma questão anterior: por que proibi-las? Afinal, drogas sempre existiram. E, com raras exceções, sempre foram toleradas. A primeira política moderna para colocar os entorpecentes na ilegalidade nasceu nos EUA, em 1914, com o Ato de Narcóticos. Era uma reação aos crescentes problemas de dependência e overdose com ópio e cocaína, uma novidade num país tão religioso. Em 1918, o governo criou uma comissão para avaliar os efeitos da legislação. O grupo concluiu que: 1) um mercado negro havia surgido para atender à a procura pelas drogas; 2) esse mercado estava organizado nacionalmente para importar e distribuir o contrabando; e 3) o uso de ópio aumentara significativamente. Diante das evidências de que a proibição beirava o fracasso, o governo americano não teve dúvidas: aumentou mais ainda as restrições, passando de 5 para 10 anos a pena máxima por crimes relacionados a drogas – na década de 1950, esse limite chegaria à pena de morte. “A opção proibicionista tem uma motivação moral muito forte, influenciada pelas instituições religiosas”, diz Sean Purdy, professor de história americana na USP.
O ciclo que começou em 1914 – repressão aumenta o preço, que valoriza o tráfico, que estimula o consumo, que aumenta a repressão – iria se repetir, sob influência americana, pelo planeta. “Os EUA usaram sua posição privilegiada na economia para estabelecer vários programas de erradicação de drogas”, diz Purdy. Em 1961, os americanos conseguiram emplacar a assinatura de um pacto global contra as drogas na ONU. Com o acordo, o mundo achou que estava pronto para enfrentar o problema.
O documento ficou bonito no papel, mas não serviu para frear a história. A década, que começou com todos os países prometendo combater o uso de drogas, terminou com soldados americanos fumando maconha no Vietnã e hippies se entupindo de LSD mundo afora. Diante desse quadro, o presidente americano Richard Nixon resolveu lançar a Guerra às Drogas, como batizou sua política de tolerância zero com a venda e o consumo. Os resultados pífios fariam a Guerra no Iraque parecer um sucesso estratégico: a repressão às drogas mais populares da época serviu para a cocaína, que andava sumida, retomar a carreira de sucesso nos EUA – e dali para o mundo.
Assim nasceram os primeiros cartéis da Colômbia e megatraficantes como Pablo Escobar. Mas, enquanto as drogas viviam seu milagre econômico, o pesadelo social ganhava dimensões catastróficas. Nos EUA, a população carcerária de crimes relacionados a drogas pulou de 50 mil para 500 mil em 30 anos. Enquanto isso, o país chegava ao 10 lugar no ranking de consumidores. “Olhar para os EUA como modelo de combate às drogas é como se inspirar na política racial da África do Sul do apartheid”, escreveu Ethan Nadelmann, da Aliança para Políticas de Drogas, ong que estuda o tema. No cenário mundial, a produção de drogas deu origem a narconações – a Colômbia com a cocaína, o Afeganistão com o ópio, o Marrocos com o haxixe e o Paraguai com a maconha – onde o comércio de drogas responde por uma parcela relevante da economia. “O problema é urgente e controverso. Mas não devemos nos negar a debatê-lo, porque a violência chegou a um ponto insustentável. A hora é agora”, disse Sergio Cabral Filho, governador do Rio de Janeiro, o estado brasileiro que mais sofre com a influência desse comércio ilegal. Jamais um governador no Brasil havia falado em colocar fim à proibição às drogas. Para Cabral, existem alternativas. E talvez esteja na hora de experimentá-las. “Temos de estudar os prós e os contras de legalizar.”



As alternativas


Na década de 1970, o governo da Suécia estava preocupado com os costumes dos suecos. O país tinha fama de ser a capital mundial da troca de casais, era um dos centros hippies da Europa e, mais preocupante, via aumentar o consumo de drogas, em especial a heroína. O Parlamento reagiu à americana: baixou um decreto com ar megalomaníaco que pretendia resgatar valores morais e criar uma “sociedade livre de drogas para não apenas reduzir mas eliminar o uso delas”. A pena para o consumo foi endurecendo gradativamente até chegar à cadeia. O resultado foi exatamente o previsto: deu certo. Hoje, os suecos não são mais conhecidos por emprestar a mulher para os amigos e consomem 2,5 vezes menos drogas do que nos anos 70. O número de usuários no país é 3 vezes menor do que a média européia. A proibição funcionou.
Experiências tão contrastantes como as dos EUA e da Suécia são surpreendentes. A partir delas, porém, podemos tirar apenas duas conclusões: proibir drogas dá errado nos EUA e dá certo na Suécia. Daí para a frente, restam suposições. Quais características desses países explicariam que a mesma idéia deu frutos distintos? “Na Suécia, a má distribuição de renda, que anda de mãos dadas com crimes como o tráfico, é baixa. E o desemprego é inferior à média européia”, escreveu num estudo sobre a experiência sueca o português Antonio Maria Costa, diretor-executivo do Escritório de Drogas da ONU. Em outras palavras, por que um cidadão escandinavo vai se meter com o tráfico se sobram oportunidades de emprego e falta o sentimento de injustiça social? Costa também lembra que a Suécia não está no caminho de nenhuma rota internacional de drogas e que a população tem alto grau de escolaridade, o que colabora para o sucesso das campanhas de prevenção do uso.
A Suécia, porém, não é o único caso de sucesso no combate à heroína. Ali perto, a Holanda também foi invadida pela droga nos anos 70. A reação foi diferente, mas igualmente bem-sucedida. Os holandeses fizeram o seguinte raciocínio: boa parte dos usuários de drogas pesadas eram jovens que iam ao traficante em busca de maconha, mas acabavam comprando a heroína, que era oferecida no mesmo lugar. Assim, se a ligação maconha-heroína fosse quebrada, os jovens consumiriam apenas a 1a, considerada pelo governo pouco nociva, em detrimento da 2a, vista como um risco social. A idéia deu origem aos koffeshops, estabelecimentos onde o usuário pode escolher variedades da erva no cardápio. As drogas continuam na ilegalidade, mas, na prática, o país deixou de processar e punir quem consome maconha.
Resultado: o número de pessoas que já provaram maconha pulou de 15% para 34%. Mas o sucesso da política está no resultado do consumo de heroína – era esse o alvo, afinal. A Holanda é hoje um dos 10 países europeus com menos usuários da droga. A experiência holandesa é, também, o melhor indício que temos de que é verdade que a maconha serve de porta de entrada para o vício. Mas não por características intrínsecas dela, e sim porque a legislação a empurra a esse posto. Mais importante, mostrou que um mercado de drogas legalizado pode não ter efeitos catastróficos. Será, então, que legalizar as drogas é uma alternativa viável para combatê-las?



Vender droga é crime?


Imagine que o comércio das drogas fosse explorado por empresas, com fiscalização séria e punições para quem não cumprisse a lei –
 nada de “liberou geral”. O comércio aconteceria apenas em locais autorizados – e as drogas mais perigosas seguiriam o modelo dos remédios controlados: venda regulada. Quem comprasse demais seria convocado por uma junta médica para avaliar a necessidade de tratamento. Para o governo, as drogas deixariam de ser prejuízo para se tornar fonte de renda. Em vez de gastar com a repressão, ele arrecadaria impostos. O dinheiro poderia ser investido em prevenção, tratamento e na fiscalização do mercado. A polícia estaria livre para resolver crimes mais relevantes. O polígono da maconha, em Pernambuco, deixaria de ser uma das regiões mais pobres e violentas do país para finalmente encontrar sua vocação econômica: a agricultura da Cannabis sativa. E o tráfico de drogas que domina as favelas do Rio morreria tão naturalmente quanto o mercado de máquinas de escrever: ninguém mais se interessaria pelos produtos do Comando Vermelho.
O economista Gary Becker, Nobel de 1992, e outros dois colegas da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, fizeram contas e desenharam como seria esse mundo na prática. No estudo A Teoria Econômica dos Bens Ilegais: O Caso das Drogas, de 2004, concluíram que é mais eficiente controlar o consumo de drogas via legalização, porque ela é muito mais barata que a proibição. Para Becker, o único entrave ao início dessa nova era é a opinião pública: o estudo não deixa dúvidas de que a classe média seria a mais prejudicada. “A proibição beneficia as famílias mais ricas, porque mantém seus filhos afastados da oferta. Ela só não é boa para os pobres, que moram nas regiões de tráfico e estão mais suscetíveis a trabalhar para o crime”, afirma. A legalização inverteria esse quadro: com a maconha vendida em toda esquina, seria mais fácil para um universitário comprá-la. E, como aconteceu na Holanda, Becker concorda que essa superoferta aumentaria o consumo. “Haveria, sim, um aumento da procura por drogas”, diz. E é exatamente nesse ponto que se batem os críticos da legalização. “Se as pessoas consumirem mais, haverá uma desorganização social enorme”, diz Luis Carlos Magno, delegado do Departamento de Narcóticos da Polícia Civil de São Paulo.
Chegamos, então, ao seguinte dilema: Becker e Magno concordam sobre as conseqüências da legalização – ela trará aumento no consumo. Mas discordam sobre como o poder público deve se posicionar frente à questão. Isso faz todo sentido. Afinal, imaginar um mundo sem drogas é uma idéia sem parâmetro na história. E droga é como sexo: abstinência é a melhor maneira de prevenir problemas, mas pragmaticamente falando, esse objetivo é inalcançável. Ou seja: quando discutimos se legalizar ou proibir é a melhor opção, estamos colocando problemas na balança e escolhendo qual caminho é o menos ruim. Qual deles é capaz de reduzir mais o custo social da droga, ou a soma de todos os malefícios que ela causa. Há ainda os valores morais: drogar-se é um direito individual ou uma questão coletiva? Como em cada país esses problemas têm um peso diferente, a receita ideal pode variar.
Peguemos o exemplo que mais nos interessa – o Brasil. Quais as conseqüências da legalização? Primeiro problema: se mais pessoas usarem drogas, precisaremos de um sistema de saúde que absorva dependentes. Mas, hoje, “o acesso a tratamento para dependentes químicos é muito pequeno, mesmo para atender apenas os de álcool e tabaco”, diz o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, da Unidade de Álcool e Drogas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Pedro Delgado, coordenador do Programa de Saúde Mental do Ministério da Saúde, responsável pelo atendimento a viciados, reconhece: “Ainda estamos longe da cobertura ideal”. Talvez chegássemos lá com o extra que a legalização traria sob forma de impostos? “O imposto do tabaco e do álcool já deveria cumprir essa função. E não é o que acontece hoje”, diz Magno.
Outro argumento contrário à legalização é que liberar apenas as drogas leves, como a maconha, praticamente não atrapalharia o poder dos traficantes – a erva representa um lucro marginal para eles. “A droga que movimenta dinheiro é a cocaína”, diz Sérgio Trivelin, chefe da Delegacia de Repressão a Entorpecentes da Polícia Federal em São Paulo. Ao legalizar a cocaína, porém, teríamos de conviver com outro tipo de violência: a dos usuários. “Cocaína é uma droga associada ao comportamento violento. Se ela fosse legalizada, provavelmente aumentaria o número de crimes cometidos para conseguir a droga”, avalia Laranjeira. E muitos duvidam que a legalização acabe com o crime organizado. “Se a polícia não estiver preparada, os criminosos se reorganizarão em outras atividades. Com o poder de fogo que têm nas mãos, eles vão tentar fazer dinheiro de outra maneira”, diz o deputado federal Fernando Gabeira. Não acabaria com a violência, mas acabaria com o poder do tráfico nas favelas, respondem os defensores da legalização. E não ter bandidos armados controlando as favelas, seduzindo meninos, é um enorme avanço.
Moral da história: legalizar é uma iéia tão sedutora quanto polêmica – existem incertezas entre a nossa realidade e todos os benefícios que ela promete. Mas, quando se discute drogas, há duas questões bem distintas. Uma coisa é o debate sobre a proibição da venda. Outra coisa é condenar quem compra. Será que devemos punir alguém por usar drogas?



Comprar droga é crime?


Não é difícil entender por que matar é crime. O mal que um assassino faz a outra pessoa é evidente. Puni-lo obedece a uma lógica simples. Mas, quando alguém toma droga, só faz mal a si mesmo. Então por que prender? “O Estado entende que o indivíduo não sabe o que é bom para sua saúde e limita seu direito de decidir o que fazer. Tira a liberdade do cidadão antes que ele perca sua liberdade porque virou um viciado”, explica o advogado criminalista Miguel Reale Jr., ex-ministro da Justiça e ex-chefe da Secretaria Nacional Antidrogas (Senad). Para Reale, o Estado trata as drogas da mesma maneira que o cinto de segurança: cria uma lei com o objetivo de proteger o cidadão de si mesmo. O problema é que o risco diz respeito à minoria. Segundo o relatório de drogas publicado pela ONU este ano, cerca de 200 milhões de pessoas usam drogas no mundo. Apenas um oitavo delas tem problemas de dependência. Para os outros sete oitavos de usuários ocasionais, a lei é mais perigosa que a droga. Mesmo no Brasil, onde não está mais prevista a pena de prisão, quem for flagrado com maconha ou ecstasy e condenado como usuário passará a ter uma ficha criminal e perderá os benefícios concedidos aos réus primários. “Isso só serve para estigmatizar e dificultar a vida da pessoa. Fica difícil, por exemplo, arrumar um emprego”, diz Reale, defensor da idéia de que o uso de drogas não deva ser considerado crime.
Os críticos da descriminalização acreditam que ela pode aumentar o número de usuários ou a intensidade com que eles se drogam. Essa situação, porém, não aconteceu em nenhum dos países que adotaram a política. Na Itália e na Espanha, o consumo de heroína aumentou, é verdade. Mas na mesma intensidade que na Alemanha, que continuou punindo usuários. Por trás dessa equação estão evidências de que a punição do usuário não desestimula significativamente o consumo. Se por um lado o medo de ser pego afasta alguns, a imagem do fruto proibido alicia outros, principalmente jovens. Para os americanos Robert MacCoun e Peter Reuter, autores de Drug War Heresies (“Heresias na Guerra das Drogas”, sem edição no Brasil), “mudanças na repressão ao usuário podem ter conseqüências surpreendentemente pequenas”. Em outras palavras: legalizar a venda aumenta o consumo. Mas proibir o consumo não serve para reduzi-lo.
No caso do dependente, a punição ao usuário é ainda mais contraditória. A compulsão por uma nova dose é maior do que a capacidade de controlar esse impulso. E o que reduz mais os custos sociais: cadeia ou tratamento médico? A Organização Mundial da Saúde (OMS), por exemplo, defende que a droga seja combatida, mas punir o usuário não traz vantagens para a sociedade. “Quando alguém decide usar cocaína, não decide ser criminoso. É a sociedade que o empurra para a margem. E isso, sim, é perigoso, porque ele sai do controle social”, diz Mônica Gorgulho, da Associação Internacional de Redução de Danos, que defende o fim das punições para usuários de drogas.
A política de não punir o usuário criminalmente hoje é aplicada em países como Portugal, Espanha, Bélgica e Finlândia. A nova lei de drogas brasileira, que entrou em vigor no ano passado, também avançou nessa direção, mas não estabelece uma quantidade para distinguir usuários e traficantes, como acontece na Europa. “Para o usuário ocasional, a vantagem é não correr o risco de ser preso. Para o dependente, é poder lutar por um tratamento”, diz o psiquiatra Dartiu Xavier, da Unifesp. Para quem não usa drogas, o benefício está na diminuição do tabu sobre o tema. Hoje, políticas de redução de dano – aquelas que partem do princípio de que drogas são consumidas e devemos trabalhar para elas fazerem menos mal – estão praticamente congeladas. “Desde o fim dos anos 90 o governo federal não faz mais campanhas de esclarecimento sobre uso de drogas porque acha que falar sobre isso aumenta a curiosidade e o consumo. Isso é medieval, é apostar na desinformação”, diz Walter Maierovitch, juiz aposentado e primeiro titular da Senad.



Para onde vai esse barato?


No que depender dos EUA, a proibição total das drogas vai continuar sendo a política dominante. A estratégia para o ano que vem é a mesma dos últimos 100 anos: guerra. Em 2008, o conflito terá orçamento de US$ 13 bilhões. Desse total, 65% combaterão o tráfico – a prevenção do consumo levará apenas 12% do bolo. Apesar de alguns países europeus adotarem políticas mais tolerantes com os usuários, ninguém por lá parece querer comprar briga séria com os americanos. A convenção da ONU de 1961 continua reinando, e a legalização não está na pauta de qualquer país. Até mesmo a Holanda atualmente trabalha para diminuir a ação dos koffeshops, sob pressão de países vizinhos e de um governo conservador.
No Brasil, caminhamos em outra direção. A legislação hoje está se abrandando. “Nossa política está orientada para diminuir as punições ao uso de drogas”, diz o general Paulo Uchoa, chefe da Senad. Apesar de ser contra a descriminalização e a legalização, ele diz o que muitos de seus opositores gostariam de ouvir. “A meta não é erradicar o consumo, mas que ele seja feito com responsabilidade”, diz. Até o nome da secretaria está de mudança: o confrontador “antidrogas” dará lugar a um conciliador “sobre drogas”. Mas ainda falta uma coisa fundamental para a formulação de qualquer política pública nacional: informação.
“A gente precisa levantar dados a partir de modelos científicos sérios. Sem essa visão, a discussão fica baseada no chute”, diz Nanci Cárdia, do Núcleo de Estudos da Violência da USP. “Para levantar dados sobre a violência derivada do tráfico, por exemplo, a gente depende da polícia. Mas é muito difícil ter essa colaboração.” Por incrível que pareça, nem o Ministério da Saúde nem o Ministério da Justiça, duas pastas diretamente afetadas pela questão, possuem qualquer estudo sobre o impacto das drogas no seu orçamento, o que mostra como o Brasil ainda está longe de compreender a dinâmica e o tamanho do problema. A falta de preparo das nossas instituições fez até Fernando Gabeira, histórico defensor da legalização, mudar de lado. “A maconha deve ser legalizada, mas só quando o Estado estiver preparado para isso. Não é possível conduzir a legalização sem uma polícia eficaz”, afirma. “Quanto a legalizar outras drogas, a decisão deve depender da experiência com a maconha.” Para Gabeira, a polícia é tão importante nessa equação porque legalizar não é uma renúncia ao controle, mas um salto de qualidade no controle.
É importante, porém, não cair no histórico equívoco brasileiro de acreditar que mudar a lei é solução para todos os problemas. Independentemente de proibir, legalizar ou descriminalizar, a melhora da segurança urbana pode ser alcançadas com ações sociais consistentes. A Colômbia, por exemplo, usou essa estratégia para se afastar dos tempos em que era conhecida por Locômbia. Nas comunidades pobres de Medellín, onde Pablo Escobar já foi rei, alguns índices que medem a violência caíram 70%. Como eles fizeram isso? Oferecendo água potável, luz elétrica, esgoto, transporte público, projetos educativos e profissionalizantes para populações carentes.
O governador Sérgio Cabral Filho foi ao país andino conhecer essas ações. Prometeu se inspirar nos trabalhos realizados e apresentou projetos para isso. Até o momento, porém, a ação mais notável de sua administração foi uma guerra de mais de 60 dias no Complexo do Alemão, uma das maiores favelas do Rio de Janeiro. Na troca de tiros, 44 pessoas morreram. Outros 56 mil moradores tiveram sua rotina interrompida: uns não puderam ir ao trabalho, outros foram, mas tiveram medo de voltar, quase todos perderam o sono com os tiroteios. Os maiores prejudicados pelo conflito foram os que nada tinham a ver com o tráfico. Como a maior parte dos habitantes deste planeta, faziam parte de um contingente que, se não fosse a vizinhança, resumiria sua relação com as drogas ao cafezinho que acompanha o pão com manteiga de manhã.


As propriedades terapêuticas da Cannabis sativa são conhecidas há mais de 2 mil anos pela medicina chinesa. Para a medicina ocidental, ela é comprovadamente eficiente para tratar náusea e vômitos em pacientes sob quimioterapia, aumentar o apetite em pacientes de aids e diminuir as dores musculares causadas pela esclerose múltipla. Mas a lei diz que tudo isso pouco importa: usar Cannabis é crime. E ponto final.
Apesar dos efeitos médicos comprovados, o acesso à maconha medicinal ainda é muito restrito. Os remédios à base de Cannabis que existem hoje – a Nabilona e o Marinol – não são muito eficientes porque o THC, que resolve a náusea, também é responsável pelo “barato” da maconha. Para evitar que o uso do remédio seja confundido com a droga, a concentração de THC é reduzida – e o efeito terapêutico também. Além disso, pacientes dizem que fumar a erva é o melhor remédio. Mas não tem sido fácil mudar a lei para conquistar esse direito, porque a maioria dos países tem medo de que autorizar o uso medicinal pode ser o primeiro passo para permitir também o uso recreativo.
Até agora, o único país que deu esse passo foi o Canadá, que autoriza o fumo e ainda garante o acesso à droga. O próprio sistema público de saúde oferece a erva ou sementes, se os doentes preferirem plantar o remédio. Antes, eles precisam provar que precisam do tratamento. Já os hospitais conseguem a droga com empresas autorizadas a produzir exclusivamente para o governo. Leis parecidas também passaram em 11 estados americanos. Só que a lei federal americana considera todas inconstitucionais. Sim, é uma confusão. Na prática, o FBI tem direito de prender qualquer um por uso, produção ou venda de maconha.

Drogas o que fazer a respeito

Drogas o que fazer a respeito


Após um século tentando eliminar as drogas, o mundo descobriu que isso é impossível. Saiba então como conviver com elas.


Bálsamo ou veneno? Comida dos deuses ou maldição do diabo? Hábito natural ou desvio da sociedade moderna? Não há resposta certa ou fácil quando o assunto são as drogas. As pesquisas de opinião refletem essa ambigüidade. Quando abordam o tema, em geral mostram que estamos longe de um consenso. Mas as pesquisas revelam algo mais. Em meio aos números, nota-se que quase não há indecisos sobre o assunto. Ou seja, não importa de que lado as pessoas estejam, o fato é que todas elas têm opinião formada – e arraigada – sobre o uso de drogas.
Surpreende encontrar esse grau de convicção em um assunto tão complexo, com aspectos médicos, econômicos, sociais, históricos e morais tão sinuosos. Quem examina esse vespeiro percebe que a coisa mais rara de achar são respostas 100% seguras.
“Só há uma coisa certa sobre as drogas: é preciso haver informação. Informação de qualidade, desvinculada da moral, do poder econômico e das forças políticas”, diz o juiz aposentado Wálter Fanganiello Maierovitch, ex-secretário nacional antidrogas e um dos maiores experts no tema no Brasil.
É isso que tentamos oferecer a você nas próximas páginas: informação. Ao longo da leitura, você encontrará questões que raramente são formuladas a respeito das drogas. E outras que, apesar de formuladas há muito tempo, seguem sem resposta definitiva. Verá que os conceitos mais simples revelam contornos inéditos quando examinados à luz do debate. E conhecerá os interesses que até agora ditaram as regras do jogo.


A abordagem atual funciona?


Os burocratas resistem a admitir, mas o mundo já perdeu a guerra contra as drogas. É essa a opinião unânime dos estudiosos do assunto, desde a conservadora e prestigiada revista inglesa The Economist até o ex-ministro da Justiça José Carlos Dias, um dos mais liberais dentre os que já ocuparam a cadeira. Um bom resumo da opinião desses experts é a declaração de Bruce Michael Bagley, Ph.D. em Ciência Política na Universidade da Califórnia e consultor sobre tráfico e segurança pública: “A política antidrogas é um fracasso. As drogas estão mais baratas, mais puras e mais acessíveis do que nunca. E o consumo de drogas aumenta ao redor do mundo”.
Traduzindo suas palavras em números: no combate à oferta, as forças policiais apreendem apenas 20% da droga em circulação. Já pelo flanco da demanda, os tratamentos que visam a abstinência curam só 30% dos usuários. “Eu não sustentaria por um dia sequer uma campanha de vacinação que fracassasse em 70% dos casos”, diz o médico Fábio Mesquita, coordenador do programa de DST/Aids da Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo e vice-presidente da Associação Internacional de Redução de Danos.
De fato, se estivéssemos vencendo, o inimigo não estaria tão viçoso. A ONU estima que o tráfico movimenta 400 bilhões de dólares no mundo, equivalente ao PIB do México. Para comparar, a indústria farmacêutica global fatura 300 bilhões; a do tabaco, 204 bilhões; a do álcool, 252 bilhões.
O irônico é que a própria repressão sustenta esse vigor, graças a uma famosa lei de mercado – “quanto maior o risco, maior o lucro”. No caso da heroína, essa margem chega a ser de 322 000%. Um quilo de ópio custa 90 dólares no Afeganistão e 290 000 dólares nas ruas americanas. E 90% do preço final fica com os traficantes do país consumidor.
Correndo subterrâneo, esse rio de dinheiro vira uma fonte inesgotável de corrupção. No Brasil, a CPI do Narcotráfico calculou que o tráfico emprega pelo menos 200 000 pessoas no país, mais que o Exército, cujo efetivo é de 190 000 pessoas. Exercendo o trabalho para o qual é paga, essa gente causa outros problemas, como o aumento da criminalidade. É evidente: quem se dispõe a enfrentar a lei atrás de lucros enormes não vai se prender a outras convenções sociais.
Na Inglaterra, um estudo da Universidade de Cambridge calculou que dependentes de drogas são responsáveis por 32% dos crimes. “Mas, ao contrário do que se pensa, a violência não é decorrente do uso da droga, mas do comércio ilegal”, diz Mesquita. Sua opinião é confirmada por pesquisa da Universidade de Columbia, em Nova York: 21% dos presos por atos violentos em 1999 nos Estados Unidos cometeram seus crimes apenas sob o efeito do álcool, 3% haviam usado crack ou cocaína e 1%, heroína. Os demais estavam sóbrios.
Por outro lado, há nas cadeias uma multidão de pessoas pouco violentas presas por envolver-se com drogas. Nos Estados Unidos, são 400 000 pessoas (20% da população carcerária), sendo 180 000 por posse e 220 000 por tráfico. Detalhe: só em 12% dos casos houve arma de fogo envolvida. Ou seja, há 340 000 presos por envolvimento não-violento com drogas.
Enfim, são altos os custos da atual abordagem sobre as drogas. Mas os benefícios compensam? Nem de longe. Há, hoje, 180 milhões de usuários de drogas no mundo, segundo a ONU. Pior: dados de 112 países divulgados no mês passado pela entidade mostram que o consumo de maconha, cocaína, heroína e anfetamina aumentou em 60% das nações entre 1996 e 2001. Além disso, triplicou a produção mundial de ópio e dobrou a de coca, entre 1985 e 1996.
Exceção à regra, os Estados Unidos reportam uma redução de consumo desde os anos 70, mas são poucos os que atribuem essa redução à ação oficial. “A repressão tem mais a ver com o ritmo natural de uma epidemia: as pessoas vêem que quem usa tem problemas e, então, não usam”, diz o economista Peter Reuter, professor do Departamento de Criminologia na Universidade de Maryland, consultor do governo americano e considerado um dos maiores especialistas do mundo no tema.
Restaria uma justificativa moral para a manutenção da atual política: se a maioria acha que a guerra vale a pena, que se respeite a democracia. Mas nem nos Estados Unidos isso acontece: mais de 75% dos americanos acreditam que a guerra contra as drogas está sendo perdida.

O Estado tem o direito de proibir o uso?


Roberto (nome fictício) foi preso fumando um baseado. Encarcerado, ele ficou matutando sobre a periculosidade de seus colegas de cela: um aplicou o golpe do bilhete premiado em uma velhinha; o outro tentou roubar um banco; e o terceiro matou a mulher. “E eu?”, pergunta-se. “Mereço ser isolado da sociedade? Quem eu ameaço estando em liberdade, além de mim mesmo?”
Em favor de seu cliente, o advogado de Roberto poderia citar a revista inglesa The Economist, que abraça a tese do filósofo John Stuart Mill: “A respeito de si mesmo, sobre seu corpo e mente, o indivíduo é soberano”. Esse raciocínio não só inocentaria Roberto, como impediria o Estado de se meter sobre o que cada um faz consigo.
Mas há uma brecha na teoria: se Roberto, depois de anos fumando maconha, tiver um câncer, o Estado terá que tratá-lo. O prejuízo seria coletivo. “O direito coletivo suplanta o individual. Todo mundo tem direito à propriedade, mas, se o Estado quer abrir uma avenida onde está sua casa, você vai ter que se mudar”, diz Wálter Maierovitch. Ou seja, se o simples uso da droga – não se trata aqui de crimes ou acidentes envolvendo usuários sob o efeito da droga, que são outra história – acarreta um custo social, o Estado teria o direito de se intrometer. Além disso, é dever do Estado proteger o cidadão. A obrigatoriedade do cinto de segurança segue o mesmo raciocínio.
“O detalhe”, diz Maierovitch, que é juiz aposentado, “é que há infrações cíveis, administrativas e criminais. O trato criminal serve para situações que geram intranqüilidade social, o que não é o caso do usuário de drogas. Ele deve ser resgatado, não criminalizado.”
É o que faz hoje Portugal, cuja legislação serve de modelo: lá, o porte de drogas é proibido, mas não criminalizado. A punição para os infratores é a mesma – para ficar no mesmo exemplo – de quem não usa cinto de segurança, ou seja, uma multa.
É preciso lembrar, porém, que o Estado em geral representa os interesses dos grupos mais influentes. “Nos Estados Unidos, a classe média, que tem grande influência sobre a opinião pública, tem muito medo de ver suas crianças envolvidas com drogas”, diz o cientista político Bruce Bagley.
Em muitos casos, e em especial no americano, os grupos mais próximos da burocracia são puritanos. “As drogas foram proscritas na América por americanos idealistas, que acreditavam que a natureza humana poderia ser tornada perfeita, que a virtude deve triunfar sobre o vício”, diz o historiador Richard Davenport-Hines.
Para o médico Fábio Mesquita, interesses econômicos também pesaram na decisão. “A maconha foi proibida, entre outras razões, por pressão da indústria farmacêutica, que produzia substâncias que disputavam com a erva o mercado dos remédios para abrir apetite, reduzir dor e enjôo.”
Para Milton Friedman, prêmio Nobel de Economia e defensor da legalização das drogas, a demora da burocracia oficial na correção da política contra as drogas é típica. “Em uma empresa privada, um programa fracassado é abortado assim que se detecta seu insucesso, para evitar prejuízo ainda maior. Um programa governamental ruim, não. Alega-se sempre que ele precisa ser um pouco diferente, um pouco maior e um pouco mais caro”, disse ele, em 1992, à revista alemã Der Spiegel.