sábado, 27 de novembro de 2010

Drogas o que fazer a respeito

Drogas o que fazer a respeito


Após um século tentando eliminar as drogas, o mundo descobriu que isso é impossível. Saiba então como conviver com elas.


Bálsamo ou veneno? Comida dos deuses ou maldição do diabo? Hábito natural ou desvio da sociedade moderna? Não há resposta certa ou fácil quando o assunto são as drogas. As pesquisas de opinião refletem essa ambigüidade. Quando abordam o tema, em geral mostram que estamos longe de um consenso. Mas as pesquisas revelam algo mais. Em meio aos números, nota-se que quase não há indecisos sobre o assunto. Ou seja, não importa de que lado as pessoas estejam, o fato é que todas elas têm opinião formada – e arraigada – sobre o uso de drogas.
Surpreende encontrar esse grau de convicção em um assunto tão complexo, com aspectos médicos, econômicos, sociais, históricos e morais tão sinuosos. Quem examina esse vespeiro percebe que a coisa mais rara de achar são respostas 100% seguras.
“Só há uma coisa certa sobre as drogas: é preciso haver informação. Informação de qualidade, desvinculada da moral, do poder econômico e das forças políticas”, diz o juiz aposentado Wálter Fanganiello Maierovitch, ex-secretário nacional antidrogas e um dos maiores experts no tema no Brasil.
É isso que tentamos oferecer a você nas próximas páginas: informação. Ao longo da leitura, você encontrará questões que raramente são formuladas a respeito das drogas. E outras que, apesar de formuladas há muito tempo, seguem sem resposta definitiva. Verá que os conceitos mais simples revelam contornos inéditos quando examinados à luz do debate. E conhecerá os interesses que até agora ditaram as regras do jogo.


A abordagem atual funciona?


Os burocratas resistem a admitir, mas o mundo já perdeu a guerra contra as drogas. É essa a opinião unânime dos estudiosos do assunto, desde a conservadora e prestigiada revista inglesa The Economist até o ex-ministro da Justiça José Carlos Dias, um dos mais liberais dentre os que já ocuparam a cadeira. Um bom resumo da opinião desses experts é a declaração de Bruce Michael Bagley, Ph.D. em Ciência Política na Universidade da Califórnia e consultor sobre tráfico e segurança pública: “A política antidrogas é um fracasso. As drogas estão mais baratas, mais puras e mais acessíveis do que nunca. E o consumo de drogas aumenta ao redor do mundo”.
Traduzindo suas palavras em números: no combate à oferta, as forças policiais apreendem apenas 20% da droga em circulação. Já pelo flanco da demanda, os tratamentos que visam a abstinência curam só 30% dos usuários. “Eu não sustentaria por um dia sequer uma campanha de vacinação que fracassasse em 70% dos casos”, diz o médico Fábio Mesquita, coordenador do programa de DST/Aids da Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo e vice-presidente da Associação Internacional de Redução de Danos.
De fato, se estivéssemos vencendo, o inimigo não estaria tão viçoso. A ONU estima que o tráfico movimenta 400 bilhões de dólares no mundo, equivalente ao PIB do México. Para comparar, a indústria farmacêutica global fatura 300 bilhões; a do tabaco, 204 bilhões; a do álcool, 252 bilhões.
O irônico é que a própria repressão sustenta esse vigor, graças a uma famosa lei de mercado – “quanto maior o risco, maior o lucro”. No caso da heroína, essa margem chega a ser de 322 000%. Um quilo de ópio custa 90 dólares no Afeganistão e 290 000 dólares nas ruas americanas. E 90% do preço final fica com os traficantes do país consumidor.
Correndo subterrâneo, esse rio de dinheiro vira uma fonte inesgotável de corrupção. No Brasil, a CPI do Narcotráfico calculou que o tráfico emprega pelo menos 200 000 pessoas no país, mais que o Exército, cujo efetivo é de 190 000 pessoas. Exercendo o trabalho para o qual é paga, essa gente causa outros problemas, como o aumento da criminalidade. É evidente: quem se dispõe a enfrentar a lei atrás de lucros enormes não vai se prender a outras convenções sociais.
Na Inglaterra, um estudo da Universidade de Cambridge calculou que dependentes de drogas são responsáveis por 32% dos crimes. “Mas, ao contrário do que se pensa, a violência não é decorrente do uso da droga, mas do comércio ilegal”, diz Mesquita. Sua opinião é confirmada por pesquisa da Universidade de Columbia, em Nova York: 21% dos presos por atos violentos em 1999 nos Estados Unidos cometeram seus crimes apenas sob o efeito do álcool, 3% haviam usado crack ou cocaína e 1%, heroína. Os demais estavam sóbrios.
Por outro lado, há nas cadeias uma multidão de pessoas pouco violentas presas por envolver-se com drogas. Nos Estados Unidos, são 400 000 pessoas (20% da população carcerária), sendo 180 000 por posse e 220 000 por tráfico. Detalhe: só em 12% dos casos houve arma de fogo envolvida. Ou seja, há 340 000 presos por envolvimento não-violento com drogas.
Enfim, são altos os custos da atual abordagem sobre as drogas. Mas os benefícios compensam? Nem de longe. Há, hoje, 180 milhões de usuários de drogas no mundo, segundo a ONU. Pior: dados de 112 países divulgados no mês passado pela entidade mostram que o consumo de maconha, cocaína, heroína e anfetamina aumentou em 60% das nações entre 1996 e 2001. Além disso, triplicou a produção mundial de ópio e dobrou a de coca, entre 1985 e 1996.
Exceção à regra, os Estados Unidos reportam uma redução de consumo desde os anos 70, mas são poucos os que atribuem essa redução à ação oficial. “A repressão tem mais a ver com o ritmo natural de uma epidemia: as pessoas vêem que quem usa tem problemas e, então, não usam”, diz o economista Peter Reuter, professor do Departamento de Criminologia na Universidade de Maryland, consultor do governo americano e considerado um dos maiores especialistas do mundo no tema.
Restaria uma justificativa moral para a manutenção da atual política: se a maioria acha que a guerra vale a pena, que se respeite a democracia. Mas nem nos Estados Unidos isso acontece: mais de 75% dos americanos acreditam que a guerra contra as drogas está sendo perdida.

O Estado tem o direito de proibir o uso?


Roberto (nome fictício) foi preso fumando um baseado. Encarcerado, ele ficou matutando sobre a periculosidade de seus colegas de cela: um aplicou o golpe do bilhete premiado em uma velhinha; o outro tentou roubar um banco; e o terceiro matou a mulher. “E eu?”, pergunta-se. “Mereço ser isolado da sociedade? Quem eu ameaço estando em liberdade, além de mim mesmo?”
Em favor de seu cliente, o advogado de Roberto poderia citar a revista inglesa The Economist, que abraça a tese do filósofo John Stuart Mill: “A respeito de si mesmo, sobre seu corpo e mente, o indivíduo é soberano”. Esse raciocínio não só inocentaria Roberto, como impediria o Estado de se meter sobre o que cada um faz consigo.
Mas há uma brecha na teoria: se Roberto, depois de anos fumando maconha, tiver um câncer, o Estado terá que tratá-lo. O prejuízo seria coletivo. “O direito coletivo suplanta o individual. Todo mundo tem direito à propriedade, mas, se o Estado quer abrir uma avenida onde está sua casa, você vai ter que se mudar”, diz Wálter Maierovitch. Ou seja, se o simples uso da droga – não se trata aqui de crimes ou acidentes envolvendo usuários sob o efeito da droga, que são outra história – acarreta um custo social, o Estado teria o direito de se intrometer. Além disso, é dever do Estado proteger o cidadão. A obrigatoriedade do cinto de segurança segue o mesmo raciocínio.
“O detalhe”, diz Maierovitch, que é juiz aposentado, “é que há infrações cíveis, administrativas e criminais. O trato criminal serve para situações que geram intranqüilidade social, o que não é o caso do usuário de drogas. Ele deve ser resgatado, não criminalizado.”
É o que faz hoje Portugal, cuja legislação serve de modelo: lá, o porte de drogas é proibido, mas não criminalizado. A punição para os infratores é a mesma – para ficar no mesmo exemplo – de quem não usa cinto de segurança, ou seja, uma multa.
É preciso lembrar, porém, que o Estado em geral representa os interesses dos grupos mais influentes. “Nos Estados Unidos, a classe média, que tem grande influência sobre a opinião pública, tem muito medo de ver suas crianças envolvidas com drogas”, diz o cientista político Bruce Bagley.
Em muitos casos, e em especial no americano, os grupos mais próximos da burocracia são puritanos. “As drogas foram proscritas na América por americanos idealistas, que acreditavam que a natureza humana poderia ser tornada perfeita, que a virtude deve triunfar sobre o vício”, diz o historiador Richard Davenport-Hines.
Para o médico Fábio Mesquita, interesses econômicos também pesaram na decisão. “A maconha foi proibida, entre outras razões, por pressão da indústria farmacêutica, que produzia substâncias que disputavam com a erva o mercado dos remédios para abrir apetite, reduzir dor e enjôo.”
Para Milton Friedman, prêmio Nobel de Economia e defensor da legalização das drogas, a demora da burocracia oficial na correção da política contra as drogas é típica. “Em uma empresa privada, um programa fracassado é abortado assim que se detecta seu insucesso, para evitar prejuízo ainda maior. Um programa governamental ruim, não. Alega-se sempre que ele precisa ser um pouco diferente, um pouco maior e um pouco mais caro”, disse ele, em 1992, à revista alemã Der Spiegel.

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